Efeito do contrato de trabalho celebrado com a administração pública sem concurso de provas e títulos

Por: Janguiê Diniz
09 de Jul de 1994

Para construirmos o novo, devemos ter vivas as palavras do historiador Hobsbawn: "o futuro não pode ser uma continuação do passado".


O nosso escopo, neste trabalho, pois, é tentar mostrar, como numa leitura de cego, que a despeito de ser o trabalhador hipossuficiente, e de ter ele despendido suas energias através do trabalho exercido, após a promualgação da Lex Fundamentalis de 1988, os contratos de trabalho celebrados entre ele e as entidades de Administração Pública Direta, Indireta e Fundacional da União, Estados e Municípios, sem o requisito impreterível do concurso público exigido no art. 37, II, da Lex Legum não geram nenhum efeito, e conseguintemente são nulos pleno jure. E que o que está em jogo é o interesse público que sempre deve prevalecer sobre o particular.


Rotineiramente, milhares de trabalhadores vão a Juízo requerer o pagamento de verbas rescisórias de contratos celebrados com entidades públicas sem que tenha havido a realização do concurso público de provas e títulos, quando as entidades reclamadas argúem em sua peça atrial de defesa nulidade de tal contrato, por ter sido feito com violação ao disposto no art. 37, II, da Carta Suprema, asseverando que o dies a quo do contrato se deu após a vigência da Carta Magna e não tendo havido concurso público.


Nesse espírito, insta perquirir: a Administração Pública (como prevista no art. 37, acima mencionado) pode admitir pessoal sem a realização do concurso público. Na minha ótica, não há outra resposta senão a negativa.


O Legislador Constituinte buscou, através de norma de elevado interesse público, restringir o ingresso de pessoal na Administração Pública, algo que vinha sendo usado com fins eleitoreiros sem qualquer respeito ao patrimônio público. A Lei Fundamental ao estabelecer que o ingresso no serviço público depende de aprovação em concurso público, excluiu toda e qualquer outra forma, exceto a nela prevista.
Neste momento em que o Brasil deve aprender a ser uma democracia alicerçada no Estado de Direito, bom é lembrar a lição do saudoso e completo mestre Pontes de Miranda l , in verbis:


"Nada mais perigoso do que fazerse Constituição sem o propósito de cumpri-la. Ou de só se cumprir nos princípios de que se precisa, ou se entende, devam ser cumpridos — o que é pior"

No momento, sobre a Constituição que, bem ou mal, está feita, o que nos incumbe, a nós, dirigentes, juízes.

l. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com Emenda n. 1 de 1969, Forense, 1987, t. 1, p. 15-6.
pretes, é cumpri-la. Só assim saberemos para que serviu e a que não serviu, nem serve. Se a nada serviu em alguns pontos, que se emende, se reveja. Se algum ponto a nada serve, que se corte este pedaço inútil. Se a algum bem público desserve, que pronto se elimine. Mas, sem cumprir, nada saberemos. Nada sabemos, nada poderemos fazer que mereça crédito. Não cumpri-la é estrangulá-la ao nascer."


É de conhecimento de todos que o cumprimento da Magna Carta é o fundamento da democracia, da dignidade e lisura da Administração Pública, e além de tudo dever do cidadão pátrio, e uma das características da Constituição é ser limitadora do exercício do poder da Autoridade Pública.


Maria Helena Diniz aborda o tema com precisão, quando magistra:
"E de essência da Constituição ser limitadora dos poderes públicos, que não podem agir senão de acordo com ela. Essa possibilidade de limitação jurídica é mais evidente no regime de Constituição rígida. A Constituição apresenta limites à atividade dos órgãos competentes para elaborar normas. Os elementos limitativos, que se manifestam nas normas atinentes aos direitos democráticos, aos direitos fundamentais, às garantias constitucionais, restringem a ação dos poderes estatais e dão tônica ao Estado de Direito".


O ápice do ordenamento jurídico positivo é na Constituição (Hans Kelsen). Ela integra, ou tenta integrar, no seu bojo, o complexo ditado pelo Poder Constituinte de princípios e normas a comandar o ordenamento jurídico.


Tal característica fez o pernambucano Marcelo Neves, em trabalho magistral intitulado "Teoria da Inconstitucionalidade das Leis afirmar que:
"A Constituição é um sistema monoempírico prescritivo (...)"


Integrante do ordenamento jurídico estatal, a Constituição tem supremacia hierárquica sobre os demais subsistemasque compõem o ordenamento, funcionando como fundamento de pertinência e critério de validade de subsistemas infraconstitucionais. Pode-se defini-la como o complemento normativo superior de determinado sistema jurídico estatal, sendo, portanto, o último fundamento e critério positivo vigente de pertinência e validade das demais normas integrantes deste sistema." Daí por que se denomina ela a norma de supremacia, expelindo outras que a firam. E o princípio da hierarquia das leis onde a Magna Carta situa-se no topo da pirâmide jurídica. E, por isso, a norma contrária ao seu texto ou espírito tem-se como nula ou inválida.


A lei fundamental donde derivam os preceitos de ordem pública e privada é a Constituição. Conclui-se, sem sombra de dúvidas, que os atos praticados contra ela são, necessariamente, ilícitos.


Pois bem! Os empregados quando iniciaram a prestação de labor para a Administração Pública o fizeram através de ato vedado pelo inciso II do art. 37 da CF/ 88, verbis:


"Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte:


I — omissis;
II — a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração".


A norma constitucional mencionada desmerece comentário, mesmo sucinto, dada a sua clareza. O concurso público é obrigatório ao ingresso na vida pública, podendo ter raríssimas exceções, previstas no teor da Carta Política (inciso VIII do art. 37), já regulamentado pela Lei 8.745, de 9 de dezembro de 1993, que permite o ingresso de pessoas nos quadros funcionais de entidades da administração pública sem o requisito do concurso público para: "atender a necessidade temporária de excepcional interesse público", nos casos de calamidade pública, combate a surtos endêmicos, recenseamentos, admissão de professor substituto e professor visitante, admissão de professor e pesquisador visitante estrangeiro e atividades especiais nas organizações das Forças Armadas para atender a área industrial ou a encargos temporários de obras e serviços de engenharia (arts. I Q e 22 da referida Lei). Note-se, entretanto, que mesmo nesses casos, consoante giza o § I Q do art. 3Q da Lei, é imprescindível o "processo seletivo simplificado sujeito a ampla divulgação, inclusive através do Diário Oficial da União".


Ademais é princípio constitucional que "as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho decidirão sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público", conforme bem asseverou o douto Procurador do Ministério Público do Trabalho, Dr. Nelson Soares da Silva , em um de seus pareceres magistrais.


Incompatível com o texto constitucional, a relação laboral não pode prevatecer. Em face disso um grande problema exsurge: os demais ramos do direito aplicariam de imediato o disposto no art. 145, IV, do Código Civil, declarando nulo o ato, aja vista que a contratação dos demandantes não obedeceu a forma prescrita em lei, sistema consubstanciado na axiomática arêmia latina: actus corruit omissa forma legis, é nulo o ato que omite a forma da lei.


O problema reside no fato de que tal disposição é baseada na teoria de que nulo o ato, se restabelece o status quo ante, sendo o efeito
ex tunc, retroagindo ao momento da formação do contrato. Todavia o Direito do Trabalho tem particularidades e dentre essas encontra-se a de que não se pode devolver a prestação de serviços despendida pelo obreiro, nem obrigáIo a devolver os salários já percebidos.


O Direito do Trabalho é pobre no disciplinamento dessa situação, uma vez que inexistem normas na CLT ou legislação extravagante que a regulamente. Nesse caso devemos nos louvar das disposições previstas no Código Civil, adaptando-as ao Direito Laboral.
A lição de Délio Maranhã05 , que onhece do assunto ex professo, é no seuinte sentido, ao qual nos filiamos:


"Atingindo a nulidade o próprio conrato, segundo os princípios do direito coum, produziria a dissolução ex tunc da elação. A nulidade do contrato, em prinípio, retroage ao instante mesmo de sua ormação quod nullum est nullum effectum roducit. Como conseqüência, as partes se evem restituir tudo o que receberam, devem voltar ao status quo ante, como se nunca tivessem contratado. Acontece, porém, que o contrato de trabalho é um contrato sucessivo, cujos efeitos, uma vez produzidos, não podem desaparecer retroativamente. Evidentemente, não pode o empregador 'devolver' ao empregado a prestação de trabalho que este executou em virtude de um contrato nulo. Assim, não é possível aplicar-se, no caso, o princípio do efeito retroativo da nulidade. Daí por que os salários que já foram pagos não devem ser
restituídos, correspondendo, como correspondem, à contraprestação de uma prestação definitivamente realizada"


Doutores, autores de obra, advogam a tese de que o princípio da primazia da realidade e o fato de ter havido boa fé deve prevalecer em relação à decretação da nulidade com efeito ex tunc, entrementes, apesar de alguns posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários nesse sentido, somos contrários a essa tese, porquanto contraria a norma fundamental contida no art. 37, II, da Constituição Federal e todos os princípios que a norteiam.


Auspicioso realçar, nesse particular, que a jurisprudência dos pretórios superiores já é remansosa e maioral, estando a transformar-se em consensus omnium jurisprudencial, sendo oportuno transcrever posicionamentos de alguns de nossos Tribunais do Trabalho, inclusive do Tribunal Superior do Trabalho, ipsis litteris:


"Concurso público. E nulo o contrato de trabalho celebrado entre trabalhador e órgão público após 5.10.88 sem a observância dos requisitos traçados no inciso II do art. 37 da Lex fundamentalis de 88" (Proc. TRT, 62 Reg., RO 338/92, Turma, em 17.11.92, publicada no DOE de 30.12.92, Rel. Juíza Eneida Melo).


"Contrato de Trabalho. Admissão no serviço público sem concurso. Nulo o contrato de trabalho face a inobservância do
disposto no art. 37, II, da Constituição Federal, não gera qualquer efeito, sendo indevidos os pedidos atinentes ao vínculo mantido entre as partes. Recurso não provido" (TRT, 62 Reg., RO-TRT 4.596/93, Rel. Gilberto Gueiros Leite, DO 15.12.93).


"Relação de emprego. A vinculação empregatícia com órgão da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios, a partir de 5/10/88, somente se dará através de aprovação prévia em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão" (art. 37, II, da CF) (AC. 12 Turma, TST n. 13.55/92 —RR — 28858/91.1 — TRT, 92 Reg., Rel. Ministro Ursulino Santos).


Estudiosos do Direito Laboral, da linhagem do Dr. Francisco Gérson Marques de Lima , se posicionam em pólo diametralmente oposto ao nosso ponto de vista. Em um de seus pareceres magistrais enfatiza que: "O Direito, Senhores, é uno. Não se pode interpretar um só de seus ramos sem o cotejo de todo o sistema jurídico".


Ora, suplicando a indulgência do douto procurador e escritor, pedimos vênia para frisar que o direito é uno, mas as normas constitucionais situam-se no topo da pirâmide e de conseguinte são de maior importância.


Por outro lado, ressalte-se o desvio de comportamento funcional das empresas da administração pública, quando deu causa a tal situação. Poder-se-ia dizer que lhes faltaria legitimidade para argüir tal nulidade, pois evidentemente haverá um benefício seu, pela própria torpidez (nemo in turpitudinem suam profitare debet), fato esse, no mínimo, reprovável. No que pertine esse ponto somos concordes.

Entrementes, é de toda prudência se encalamistrar que o que está em jogo é o interesse público que sempre deve prevalecer sobre o interesse particular. A responsabilidade, entretanto, dos maus administradores das entidades da Administração Pública é matéria que não compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgar.

 

Transformando

Sonhos em Realidade

Na primeira parte da minha autobiografia, conto minha trajetória, desde a infância pobre por diversos lugares do Brasil, até a fundação do grupo Ser Educacional e sua entrada na Bolsa de Valores, o maior IPO da educação brasileira. Diversos sonhos que foram transformados em realidade.

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